quarta-feira, fevereiro 28, 2007


TODO CARNAVAL REVELA UM OTÁRIO DE PLANTÃO

eu amigo, minhas amigas, desde a invenção do Carnaval, mais de dez mil anos antes de Cristo, que tem otário achando que vai se dar bem com a mulher, depois de sumir dias e dias na esbórnia e depois voltar com a cara lavada, como se fosse um anjinho, vítima da sanha destas mulheres pecadoras; verdadeiras bestas-feras que pegam a gente e fazem o que querem, sobrando na quarta-feira de cinzas apenas os ossos, o cansaço, um certo ar de felicidade e missão cumprida e a vergonha de tanta sem-vergonhice a que o sujeito se sujeitou.
Lembro bem de vários casos bisonhos, de gaiato pensando ser sabido e quebrando a cara, mas nenhum otário do cabedal de Irineu (mais conhecido como Inho) dos Santos, um dos últimos estafetas da Empresa dos Correios e Telégrafos e que começara a carreira entregando telegramas para a Western Union – que Deus a tenha – de triste memória para quem precisava passar um cabograma, daquele tipo que terminava com PT (favor não confundir com aquilo, aquele) Saudações. Pagava-se caro e o telegrama nunca chegava. Eram outros tempos.
Já neste tempo, final dos anos 60 do século passado Inho já fazia besteira, recém-casado.
Certa vez saiu sábado de Carnaval (naquele tempo a festa em Salvador começava aos sábados depois do meio-dia, o chamado Horário Inglês) e deixou a mulher em casa dizendo que ia comprar caranguejo na Feira das Sete Portas. Fugiu para a Praça Castro Alves e já na saída de casa, no bairro do Uruguai, entrou no clima. Encontrou um grupo de mascarados os chamados Caretas (no mesmo período os militares proibiram o uso de máscaras) e fez a festa. Encontrou um cara fantasiado de grego, outro de Tarzan, um de Jim das Selvas, mais um de Mandrake, lá vinha outro como marinheiro, mais um como louco, outro parecendo gladiador romano. Imagine que naquele tempo quem brincava o Carnaval se fantasiava daquilo que quisesse, e quem mais faziam sucesso eram os “havaianos” com seus sarongues e colares coloridos.
Neste tempo o povão brincava nas ruas, nos bairros e no Centro Histórico.
Os ricos e os remediados se cruzavam nos bailes carnavalescos do Bahiano de Tênis, Iate Clube, Associação Atlética da Bahia, Sírio-Libanês, Centro Espanhol, Cruz Vermelha, Euterpe, Clube dos Oficiais da Polícia Militar, Itapagipe, Botafogo e outros. As orquestras de sopro e percussão “botavam pra quebrar” (...olalaô ôôô ôôô! Mas que calor ôôô ôôô!) com suas marchinhas e tome batalha de confetes e serpentinas.
Sendo levado pela alegria lá foi Inho para a Praça Castro Alves. Caetano Veloso rompia a barreira do som e emplacava a música “Atrás do Trio Elétrico”. O trio de Dodô e Osmar (com Armandinho), os inventores do carnaval eletrizado competia com o Tapajós, sempre criativo e com o trio do bloco “Ensopado de Tatu” que trazia como atração o trio de Codó, Oscar e Orlandinho...já sentiu, né? Inho cada vez mais enlouquecido de alegria coroou o dia arrumando uma paquera. Nem ele se lembra mais do que acontecera durante os dias de Carnaval.
Na quarta-feira de cinzas chegou em casa e encontrou a mulher na porta. Descia da ambulância (coisa de amigo), todo cheio de gaze, esparadrapo, mercúrio cromo e talas, dizendo que tinha sido atropelado quando, no sábado, trazia os caranguejos para casa. A mulher perguntou, sem demonstrar a menor pena, como foi e ele explicou que vinha trazendo os crustáceos quando se soltaram da corda. O que fez então, disse, veio tangendo, aboiando, arrebanhando, vaquejando os bichos como se tivesse levando boi para o curral e, quando estava perto de casa, um dos caranguejos se apartou do “rebanho” e foi para o meio da rua e ele indo atrás veio um carro e atropelou. Ainda perguntou para a mulher:
- Você acha que é fácil botar para andar em linha reta uns bichos que andam para trás?
A mulher não disse nada. Na hora de tomar banho ela tirou com cuidado as bandagens e ataduras. O bicho pegou foi quando tirou a cueca do cara e viu que a bunda estava cheia de confetes e purpurinas. Inho só não apanhou mais porque correu para debaixo da bata de Padre Bento, na igreja dos Mares.
Mas levou um sermão, com o padre, um homem letrado, dizendo que ou tomasse vergonha na cara ou fosse mais sabido. Foi aí que explicou que existem registros de mulheres que batiam no marido antes mesmo da Era Cristã, quando homens, mulheres e crianças se reuniam no verão com os rostos mascarados e os corpos pintados para espantar os demônios da má colheita. Acontecia amiúde nas festas do Egito em homenagem a deusa Isis e ao Touro Apis. Os gregos não ficavam atrás e faziam pândega para Lupercio e Saturno, celebrando o retorno da Primavera e o renascimento da Mãe Natureza. Na Europa, os mais antigos carnavais vêm de Paris, Veneza, Munique, Roma, Nápoles, Florença e Nice. No Brasil, explicou padre Bento, o carnaval foi chamado de Entrudo em 1723, por influência dos portugueses da Ilha da Madeira, Açores e Cabo Verde. Era tudo muito animado, com mela-mela de farinha, água e limão. Aqui ocorre aos quarenta dias anteriores que vão da quarta-feira de cinzas ao domingo de Páscoa. Depois vem a Micareta, que acontece na terceira semana da Quaresma, na cidade de Feira de Santana e que deu origem a várias outras em estados do Nordeste, todas com características baiana, com a presença indispensável dos Trios Elétricos e são realizadas no decorrer do ano. Fortaleza tem o Fortal. Natal, o Carnatal. João Pessoa, a Micaroa. Campina Grande, a Micarande. Maceió, o Maceió Fest. Caruaru, o Micarú e em Recife, o Recifolia. Inho ouviu calado e pensando que seria melhor ter levado porrada da mulher. No Carnaval que terminou na quarta-feira passada foi pior. Sumira na quarta-feira passada, inclusive com a mochila cheia de correspondência para entregar e somente chegou na quinta-feira. Encontrou uma nega maravilhosa e curtiu a valer. Quando acordou na casa dela, depois do Carnaval, viu que estava em maus lençóis. Teve uma idéia “brilhante” e pediu a negona que arrumasse giz. Sujou o rosto, a farda dos Correios e chegou em casa pedindo desculpas por ter sumido e foi logo dizendo que tinha curtido o Carnaval, bebeu de montão, cheirou lança, fumou um cigarro estranho e tinha ficado todos os dias com uma mulherona, numa boa.
A mulher foi pegando a antena da televisão e mandando no lombo. Ela batia e só dizia:
- Homem mentiroso! Você passou foi todos estes dias no vício da sinuca, perdendo dinheiro. Está cheio de pó de giz e nem lembrou de tirar o que estava atrás da orelha.
Pois é. Nem assim Inho escapou da surra.
Desta vez padre Bento não estava lá para ajudar.

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quinta-feira, fevereiro 08, 2007


FINGINDO SER INTELIGENTE

oi assim: a mulher encostou no meu lado do balcão no Mercado Modelo e perguntou se eu era baiano e eu disse que sim. Passou então elogiar a fluidez dos movimentos dos capoeiristas; uns caras sarados e suados. Me disse, sem eu perguntar, que sentia falta de um bom diálogo (como se ela quisesse mesmo conversa mole, naquela hora do vuco-vuco), falar de coisas diferentes de Olodum, Axé, Pelourinho, acarajé, reggae, moqueca e aquele dia em que pegaram dois caras branquelas lá da Barra que estavam zoando no ensaio do Ilê Ayiê e quebraram no pau. Expliquei que ela estava errada, que embora a capoeira fosse uma arte essencialmente das camadas populares e dos negros, conhecia muitos capoeiristas, ali mesmo no Mercado Modelo ou do Restaurante Solar do Unhão, que estudavam em faculdades e pagavam a mensalidade jogando capoeira ou que tinham se formado mas ganhavam muito mais dinheiro se apresentando para turistas. Sem falar que de vez em quando arrumavam uma gringa que dava boa vida. Ela fez ouvido-de-mercador. Não sei o que aquela branquela filha da USP com doutorado nos States viu em mim e veio puxar conversa - o que já gerou duas espécies de mal-estar naquele habitat de ostras, dobradinha, caipirosca e batidas: a primeira com os capoeiristas olhando com ódio, pois todos estavam a fim, de papar a loiraça belzebu; e em seguida as brincadeiras sem graça que os cachaceiros ao lado não paravam de fazer por causa da coxona que a mulher exibia sob o manto fino de uma saia indiana que deixava transparecer a silhueta na contra-luz que vinha da rua.
O diabo da mulher me elegera, dentre milhares de turistas de tudo que é lado que veio, pois turista e formiga taco-taco a gente não sabe qual a origem, a não ser depois de arrancar um naco da gente, bêbados, gigolôs e comerciantes.
Então aproveitei e estou eu dando atenção para aquela moça desinibida e ela primeiro me pergunta o que estava comendo e eu disse que era papafumo e passei a explicar o que era papafumo, como as mulheres da Ribeira, Bonfim, Tainheiros e do outro lado da Ilha de Itaparica faziam para catar, acocoradas e com grandes colheres de alumínio ou pazinhas, riscando a praia; até dei dica como se cozinha, falei dos temperos e do cozimento; informei como é bom comer, com uma pouco de pimenta de cheiro. Na minha verborréia expliquei que é melhor que degustar com pimenta malagueta, pois esta arde muito e para encarar somente sendo iniciado e por aí vai. Pensei que a mulher ia tomar umas biritas, provar uns quitutes e se picar. Foi quando percebi que ela não estava se importando nem com minha careca, nem a barriga mais que saliente, nem os dentes falsos e muito menos meu sovaco cheirando a leite azedo. Acho que ela estava cansada de levar surra de... da negrada e agora pensava que iria conseguir um papo cabeça - e bem que minha mãe diz que fico parecendo intelectual quando uso óculos.
Vislumbrei a oportunidade de mandar ver em cima da professora paulistana e, quem sabe, por causa dos vapores das batidas e pela essência afrodisíaca dos mexilhões e do caldo de sururu fiquei interessado. Foi quando ela, achando que eu era culto e inteligente, já que passei a dissertar sobre autores baianos que ela admira, como Jorge Amado, Antonio Torres, João Ubaldo, Ruy Espinheira, Elieser César e Ayeska Paulafreitas, dentre outros, elevou o nível da conversa e deu para explicar a miscigenação brasileira sob o ângulo de visão de Roberto da Matta. Eu que nunca li nada do homem ouvindo quieto e de vez em quando balançando a cabeça, como se tudo estivesse entendendo e harmonizando.
Depois ela passou a falar do negro baiano na ótica de Pierre Verger e aí fiz um trocadilho, para mostrar que era engraçadinha, dizendo que Verger era bom de ótica e de zoom. Vixe!
E o papo ia segundo, o Mercado Modelo já fechando suas portas eu doido para deixar aquelas carnes brancas toda roxa e a mulher me sai com uma tese de que o baiano é cordial por causa do vai-e-vem das ondas do mar de Itapuã, coisa da experimentação intelectual de Claude Lévi-Strauss, que achava ser bastante plausível, e foi quando ela me perguntou se eu conhecia sua obra e eu com toda empáfia disse que sim. Culhuda!
Quanto às ladeiras de Salvador, me perguntou se o arquiteto português Luis Dias, trazido que foi por Tomé de Souza em 1549 para criar a cidade e edificar as colinas não seria uma espécie de Niemayer da época, já que suas obras eram qualificadas pelo uso de torreões cilíndricos, que foram aplicados em sistemas defensivos em todas as cidades de fronteiras portuguesas, por volta dessa época, baseados em polígonos regulares e com baluartes, com um novo conceito de urbanismo, optando pela simetria ou formas geométricas perpendiculares e retas, introduzindo conceitos de regularidade.
Respirei fundo. Fui percebendo que, pelo fato de somente abanar a cabeça, esperando que a mulher se embebedasse e fôssemos para um brega (“coisa mais típica e folclórica, feito por todos os baianos da gema”, pretendia argumentar para ela, a fim de justificar a premência da escolha de um local alí perto), já estava gerando uma certa desconfiança. Até que ela deu uma gude-presa, golpe fatal, tiro-de-misericórdia:
- Você fez qual faculdade?
Menti dizendo que Universidade Federal da Bahia.
- Se formou em quê?
Menti de novo dizendo que em Filosofia. Ela nem esperou e disparou a pergunta miseravona:
- Qual a parte da obra de Friedrich Nietzsche que você mais gosta: “Assim Falava Zaratustra” ou “Humano, Demasiado Humano”?
Ah! Foi então que me retei de vez e respondi de chôfre, num baianês claro e legítimo:
- E aí, minha nêga! Pode ser ou tá difícil?

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sábado, fevereiro 03, 2007


A MULHER QUE GARANTE SER UMA SEREIA

ão deu para ir à Festa de Iemanjá no Rio Vermelho e joguei uma flor aqui mesmo no Porto da Barra, mas depois peguei de volta catando rosas, orquídeas, jasmins, graxeira e outras mais, pedindo desculpas para a deusa afro-brasileira, pois lembrei que estava poluindo o mar. Tinha certeza que ela iria entender e perdoar. Mas não é que levantando os olhos encontrei dona Iara, que nunca soube o sobrenome e é assim, só assim, que ela se apresenta, junto de mim na areia. Eu a conheci anos passados numa ida à Chapada Diamantina. Ela, morena franzina e com cabelos pretos que de tão longo batia na cintura, os mantinham presos num coque “não quero mais que me reconheçam e por isso estou longe de casa”, me disse quando perguntei o porquê de não deixar a cabeleira solta para respirar. Lembrei que minha mãe sempre dizia para minhas irmãs que deixar cabelo preso tira o viço e começa a cair.

Em Lençóis, acho que ela estava num grupo de pessoas que se diziam abduzidas e foram lá em busca ou de Objetos Voadores Não-Identificados ou para tentar encontrar de novo os alienígenas que fizeram a abdução.

Ontem encontrei a mulher vindo do Rio Vermelho. Ela me garante que veio nadando e quando chegou perto da praia virou mulher, sereia que garante ser, e mais importante: a própria Iemanjá. E se diz chamar Iara, pois é quando se transforma em deusa protetora das águas dos rios. Lógico que eu acredito e dou trela. Ela estava chateada porque, me disse, estavam desvirtuando os festejos em sua homenagem.

“Todos os anos espero o dia 2 de fevereiro e a cada ano me decepciono mais”, desabafou. O que ela acha de ruim é que as pessoas vão prestar homenagens e colocam presentes baratos nos cestos. Outros estão apenas interessados em beber até cair nas barracas. Eu disse que era a crise econômica. Respondeu que era sovinice e descaração mesmo. Lembrou dos tempos em que as melhores homenagens à sua pessoa (Iemanjá) acontecia na Loca da Sereia, no Monte Serrat, sempre no mês de dezembro. No Rio Vermelho começou na segunda quadra do século passado, com os pescadores fazendo oferendas. Foi crescendo a participação popular e hoje é a terceira festa mais importante do Calendário de Festas da Bahia, perdendo apenas para o Carnaval e para a Lavagem do Bonfim. O papo continuou. Ela revelou que antigamente os pescadores eram ajudados por mães de santo que colocavam os balaios com água de cheiro, flores, comida, espelhos, colares, pulseiras, sandálias, pentes, roupas, cartas e passadeiras ao lado da Casa do Peso (onde se pesa e vende pescado até hoje).

“Até dinheiro botavam”, arregala os olhos.

No papo com ela fico sabendo que esta é a única festa que não teve origem no catolicismo e sim no candomblé. Revela também que houve uma época em que se viu contrariada com os pescadores, que a pegaram numa rede e a obrigaram a participar de uma missa na Igreja de Santana. Achincalharam, maltrataram e depois que a soltaram na água novamente ela rogou uma praga e nunca mais se pescou baléias ou xaréu do Rio Vermelho a Amaralina. Diz se arrepender, pois sabe das necessidades dos pescadores, mas que é tarde para voltar atrás. Perguntei onde ela mora e me diz que na Pedra da Sereia, numa gruta, e que costuma tomar banho de sol na Pedra da Gaivota, defronte à Praia da Paciência, no mesmo bairro.

Interessante é que quem pesquisar vai ver que tudo que dona Iara fala tem consistência com o ideário popular.

Historiadores dizem que foi assim mesmo como ela conta, que antigamente havia missa pela manhã e entrega de presente à tarde, até que alguém lembrou que na África havia o mesmo tipo de homenagem. Como não tinha terreiro no Rio Vermelho, foram convencer a mãe-de-santo Júlia Bugan, lá na Federação, no Gantois.

Dona Iara não gosta do horário da entrega do presente, sempre às quatro da tarde. Preferia que fosse horário móvel.

- Se nesta hora a maré está enchendo os presentes voltam para a praia. Gosto quando a maré está vazando, pois tudo vai parar nos meus domínios - explicou, acabando com a idéia de que os presentes que voltam foram devolvidos por ela “se bem que tem muita coisa que não presta mesmo e não fico para mim”. Quando os presentes são bons ela garante mar calmo e muito pescado o ano inteiro. Perguntei para a velha senhora que idade tinha e ela disse não mais saber, lembrando apenas que nasceu há muito tempo e chora quando lembra que seu filho Orungan se apaixonou por ela e tentou violentá-la. Ela correu para não acontecer o incesto e caiu de uma falésia. Na queda, dos seus seios saíram os rios, e do seu ventre todos os orixás. Ela disse estar cansada da festa e que deveria voltar para a Chapada Diamantina, de onde só sai no dia 2 de fevereiro.

Perguntei como iria viajar e me disse que de ônibus, pois para nadar até a Chapada teria de ir contra a maré, depois nadar contra o rio Paraguaçu, que deságua na Baía de Todos os Santos e daí ir subindo, pegando vários rios até chegar ao rio São Francisco, Santo Onofre e Paramirim, que é onde ela fica hoje. Perguntei se não queria uns trocados para a passagem e ela aceitou.

Fiquei feliz, pois Iemanjá (dona Iara), aceitara meu presente e com certeza vou ter um bom ano. Aproveitei e pedi para proteger também os pescadores. Fechei os olhos durante um bom tempo para não vê-la se transformar em sereia e não quebrar o encanto.

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