segunda-feira, janeiro 19, 2009


Ensaio


 

"A arte da guerra?"

 

 

Como se chama o ato ou a cena de abertura de uma partida de futebol? Pontapé inicial.

 

 Que coisa mais emblemática é o espetáculo começar com um pontapé! E olha que, ao pé da letra, o lance não é lá esses pontapés todos. Não! É um toquezinho leve, protocolar, um passe curtinho de um atleta para outro.  

 

 Por que não o chamam simplesmente 'abertura'? Por que não 'toque inicial', ou 'primeiro ato', ou 'ato inicial'? Por que tem que ser logo pontapé - e nem pontapé ele é? 

 

 Pensemos: se o toque inaugural, leve e inofensivo, carrega essa simbologia de violência, o que esperar de outros lances, outras cenas, outros atos do futebol? "Futebol é esporte de contato físico", dizem narradores, comentaristas, repórteres, cronistas, atletas, árbitros, dirigentes, torcedores.    

 

 Na brincadeira de bola de crianças, na partida de um torneio juvenil ou num amistoso entre veteranos, quando um jogador reclama de uma falta dura, o faltoso sempre retruca, com o peito estufado "Futebol não é pra moça, futebol é pra macho".

 

O futebol parece meter os pés pelas bocas. Os pés de profissionais ou peladeiros soltam chutes, chutões, petardos, pontapés, pancadas, canhões, pauladas. Pela boca, atletas cospem a torto e a direito, xingam juiz, bandeirinha, adversário e até companheiro. "Futebol é assim mesmo!", dizemos já conformados, acostumados.

 

Resignados, fazemos ouvidos moucos aos cânticos de guerra, aos xingamentos que revelam preconceito e discriminação. Conformados, acostumados, resignados, achamos normais expressões como 'corno', 'veado', 'filho da p...', 'vá tomar no...'

 

E o consenso da bola contemporiza: "Ah!, isso faz parte do futebol".

 

 No palavreado do futebol tem-se retranca, time defensivo, time com poderio ofensivo, que joga no ataque, time agressivo. E ela, a violência, se sentindo a dona da bola, a bela do pedaço, toda onipotente, onipresente.

 

Até a regra oficial do futebol traz expressões que evocam violência. Tem o tiro livre, o tiro livre direto, o tiro livre indireto, o tiro de meta, o tiro de canto... É tanto tiro que a coisa mais parece um tiroteio, um bombardeio.

 

Na linguagem do futebol tem chutador, artilharia, atirador, artilheiro e matador. Tem confronto direto, eliminação, campo inimigo. Tem guerra, combate, duelo. E tem ela, a pior de todas as expressões do campo de batalhas: o mata-mata, expressão que significa partida eliminatória (eliminação, neste caso, é igual a morte). Isso, sem falar numa tal 'morte súbita' (veja quadro).

 

 Não há a menor sombra de dúvidas: quase tudo no mundo da bola tem um componente de violência. Atos, fatos, cenas, enredos, papéis, personagens,  palcos e platéias formam um universo de briga, duelo, confronto, guerra, combate, batalha.

 

 

 

Observemos o estádio e o seu entorno! Formam uma zona de conflitos. Tem-se dois lados, duas equipes, duas torcidas. É como se fossem dois exércitos, com seus comandantes e comandados, táticas e técnicas, hinos e bandeiras, escudos e uniformes, heróis e vilões.

 

O palco, que é o campo de jogo, tem a simbologia de uma arena de gladiadores. Às vezes chamam-no campo de batalha. A praça esportiva, ironicamente, é praça de guerra. Nesse filme cheio de tiros e violência, o papel principal é destinado ao artilheiro, que é a estrela, orgulhosamente chamado de herói, ídolo, ou simplesmente matador.

 

 Não se fala mais em goleador, como se dizia antigamente. Hoje, todas as honras e todas as glórias vão para ele, o "matador". No mundo do futebol, a linguagem da violência, da guerra, é algo banal, trivial, normal. No futebol, a morte não causa mais espanto.

 

 

Até numa cidadezinha do Rio Grande do Sul tem gente matando gente por causa do futebol. Após discussão sobre futebol, uma esposa gremista matou o marido colorado a facadas.

 

 Fé cega. Faca amolada.

 

O futebol endeusa e glorifica o "matador".

 

Já o vôlei prefere festejar o "maior pontuador", o "melhor saque", o "melhor bloqueio".

 

No basquete, o destaque não é artilheiro matador, é o "cestinha".

 

O maior ídolo do nosso basquete, Oscar, tem um apelido singelo: "Mão Santa"!

 

 

No vôlei e no basquete não se mata nem se morre.

 

 

 

E olha que, diferentemente do futebol, esses esportes não admitem empate, um tem que perder, outro tem que ganhar.   

 

 

 

As torcidas de futebol? Credo em cruz! Elas são um capítulo à parte!

 

 

 

Comecemos pelos nomes: Fúria, Mancha, Comando, Facção, Gangue, Falange... Suas músicas são cânticos de guerra. Seus símbolos são caveiras, arcos, flechas. Pequenos exércitos preparados para a guerra.

 

 Mas que guerra, cara-pálida?!? O esporte não é coisa do bem? Não é saúde e vida? Por que fazer dele uma guerra? 

 

 O universo do futebol é uma espécie de produto com "defeito de fabricação". O futebol é uma metáfora da guerra. Traz o cheiro, a cor e, sobretudo, a linguagem, o vocabulário da violência - seja dentro, seja fora dos gramados.

 

Marcelo Torres

Jornalista, cronista, baiano, torcedor do Vitória, mora-trabalha-e-se-diverte-em-Brasília - Blog http://marcelotorres.zip.net

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