sábado, janeiro 24, 2009


 

Brasília des(cons)truída

Por Marcelo Torres*
 
A construção de Brasília foi um fato épico, uma epopéia que mereceria registro numa narrativa para o cinema e a literatura. A grande aventura humana no coração do Brasil nasceu de uma profecia, que virou sonho, que se transformou em idéia, que virou cidade, numa história que tem santo, presidente, arquiteto e os candangos construtores.                
 
Mas Brasília parece já ter nascido sob uma maldição que a condena a pagar para todo o sempre o 'pecado original' de ter substituído o Rio de Janeiro como capital do país. Como poderia o Brasil tirar sua sede do litoral civilizado, da cidade maravilhosa, cheia de encantos mil, e construir uma  capital no interior, no mato selvagem?  
 
Esse 'pecado original', esse estado de culpa forjou um outro fato, mas não tão épico: a desconstrução de Brasília, um processo midiático que, embora não seja ação orquestrada entre supostos inimigos da cidade, se concentra em revelar a podridão da sede do poder, ignorando tudo que em Brasília é singularmente bom, humano e civilizado.  
 
Na imprensa, quase toda concentrada no litoral, a facilidade em escancarar o negativo contrasta com a má-vontade em noticiar fatos positivos do lugar. Se um político, vindo de outra cidade, joga papel no chão, a notícia não contextualiza, faz parecer que isso aqui é regra, quando é uma desonrosa exceção.      
 
Em janeiro, a mídia brasileira informou que Paris proibira o fumo em locais fechados. Ora, em Brasília há muito tempo é proibido fumar nesses locais; aqui ninguém fuma dentro de bar, restaurante, shopping, órgão público, boate; os jornalistas das sucursais da 'grande imprensa', fumantes ou não, sabem disso, mas o país não sabe.
 
Em maio de 2004, a imprensa repercutiu a notificação que o então mi nistro Ciro Gomes recebera por fumar em órgão público. Mas a notícia, como sempre, não contextualizava, se prendia à reação do ministro, para mostrá-lo como 'pavio curto', ocultando a informação de que, em Brasília, ao contrário das demais cidades brasileiras, essa lei é cumprida.
 
 
Vista sob o enganoso rótulo do "Você sabe com quem está falando?", recheada de estigmas desabonadores, a cidade que para a Unesco é um Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade, para a maioria dos brasileiros simboliza uma dívida impagável, um pecado capital, a maior de todas as vergonhas nacionais.
 
Em qualquer lugar deste país ouve-se dizer que "Brasília é solidão, frieza, corrupção, custo de vida alto". Os brasileiros, até mesmo aqueles que não conhecem Brasília - e mais de 150 milhões não a conhecem -, possuem uma imagem já pré-concebida, negativa, rotulada, estigmatizada sobre a cidade.
 
O país inteiro ficou sabendo que, em Brasília, o filho de um então ministro, dirigindo sem habilitação com a cumplicidade do pai, atropelou e matou um pedestre; mas ninguém no país sabe que em Brasília os motoristas respeitam rigorosamente a faixa de pedestres - e olha que são 2,5 milhões de habitantes, 1 milhão de veículos e 5.000 faixas.
 
O Brasil não sabe que, aqui, buzinar é um atentado social. Nas entradas da cidade há placas com o aviso: "Senhores visitantes, aqui nós não costumamos buzinar". Aqui, às duas horas da madrugada é possível ver um carro parado diante do sinal vermelho, mesmo sem câmera, mesmo sem carro na outra pista (transversal).
 
Os motoristas brasilienses, com raras exceções, sabem quando entrar num 'balão' (rotatória) e, em geral, têm o senso de respeito à preferência do outro motorista, coisas raras em outras cidades brasileiras, inclusive naquelas que têm menos veículos e habitantes que Brasília.    
     
A cidade é uma floresta urbana: 120 metros quadrados de área verde por habitante (dez vezes o parâmetro da Organização Mundial de Saúde), 50 milhões de metros quadrados de grama e quatro milhões de árvores, quase duas árvores para cada habitante.  
 
Mas o que os brasileiros guardam sobre Brasília são estigmas, rótulos, estereótipos. Num país de memória curta, que esquece dos saques e massacres contra 30 milhões de indígenas, alguém sempre lembra que "Em Brasília queimam e matam índio", como a culpar todo um povo, uma cidade inteira.  
 
O brasileiro, que não lembra em quem votou, também esquece que 98,84% dos congressistas representam os estados - o Distrito Federal só elege oito dos 513 deputados e três dos 81 senadores. Os políticos (98%) não vivem, não votam, não moram em Brasília (chegam na segunda e voltam na quinta-feira). Mesmo que fossem moradores, não passariam de 0,02% da população local.      
 
Singular e plural, Brasília é a síntese do país. Aqui estão os cheiros, as cores, as vozes do Brasil. Gentes de todas as partes do país fazem esta ser uma cidade de muitas cidades. Brasília, com suas retas e curvas, balões e tesouras, sol e chuva, matos e blocos, é um templo de pluralidade, uma colcha de retalhos da identidade nacional, um caldeirão de gentes, idéias, culturas e sotaques.   
  

* Marcelo Torres
Jornalista, cronista, baiano, torcedor do Vitória, mora-trabalha-e-se-diverte-em-Brasília - Blog http://marcelotorres.zip.net
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1 Comments:

At 5:28 PM, Anonymous Anônimo said...

Recebi um e-mail com um texto do Marcelo Torres entitulado "Pelas ruas de Brasilia". Simplismente maravilhoso!!

 

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