domingo, outubro 26, 2008


Artigo

 É  de manhã

 

Ao envelhecer, o homem se torna mais contemplativo. Investe mais tempo em aprofundar aspectos da vida que os ímpetos da juventude imediatista varriam sem remorso.

Desde minha chegada a Salvador, tive vários gatos. Recolhidos com poucos dias na rua, chorando, esfomeados, cheios de pulgas. Crescendo, se aventuravam pelos telhados e os matos da encosta. Todos morreram de forma violenta, envenenados ou rins quebrados a pauladas. Cansei de chamar o veterinário para a injeção do adeus.

O último felino enterrado dois dias antes, viajei por longo tempo. Ao regressar, constatei que os pássaros, sem mais receio, tinham se apoderado dos terraços da casa. A eles resolvi então dedicar uns poucos esforços cotidianos e renunciei a carinhosa companhia dos gatos.

Hoje, a casa é dos pássaros. Não se constrangem em atravessá-la, entrando, despreocupados, pela sala e saindo pela cozinha, quando não pela biblioteca. E isto, mesmo quando a casa está cheia de amigos! Gosto de ver o olhar admirado dos visitantes. Cada um com sua vaidade. Lentamente, vou aprendendo a conhecer suas famílias, já que com estes não me criei. Minha praia era mais com rouxinóis, cegonhas, corvos e melros. Tento compensar as inúmeras falhas com o Dalgas Frisch oferecido pelo irmão paulista Wladimir

De manhã, casais de cambaçicas chegam a pousar na mesa onde estou tomando meu café para continuar suas animadas discussões. Os bem-te-vis, tão atrevidos quanto desconfiados, pegam seu pedaço de pão e voam até a palmeira vizinha. Já disse e repito que gosto especialmente destes mascarados. Mas amor não é cegueira. Suspeito-os de serem abomináveis canibais. Minha desconfiança começou com a descoberta de que eles vinham a roubar as rações, bolinhas altamente carniceiras, de Pucki e Rodin, meus bulldogs franceses, e aumentou ao reparar – isto me preocupou bastante – que um deles se aproximara de um filhotinho de pardal, perseguindo-o até perder de vista. Aguardo confirmação do ornitólogo de plantão.

As rolinhas, em sentinela desde cedo, esperam com infinita paciência que eu vá jogar o alpiste matinal. Fico observando-as. Muito espertas elas não são, comendo ao acaso, sem o mínimo método, e brigando, asa em riste, com qualquer outra que se aproxime de "suas" sementes.  Os beija-flores – outros que são de uma agressividade descomunal, merecendo em breve uma crônica só para eles – se apoderam dos bebedores de água açucarada. Imaginem que um destes minúsculos pássaros se permite considerar como seus dois bebedores ao mesmo tempo, proibindo os da própria turma a vir saciar a sede!

Quem sempre marca presença, de uns três meses para cá, são os sanhaços-cinzentos, na verdade mais sutilmente azulados, e até um sabiá. Olham para todos os lados, hesitam muito e pegam, como que roubando, um pedaço de pão molhado para pique-nicar em lugar mais seguro. Mais solitário é o inhapim. Totalmente negro, com uma linda mancha amarela nas asas, é também um aficionado de água açucarada. Não é fácil para ele se pendurar e segurar nos bebedores de plástico. Mas, teimoso, volta a cada instante. Mais raras são as lavadeiras. Tão bonitinhas e elegantes com sua roupagem branca listrada de negro! Lembram-me o vestido de Audrey Hepburn, criado por Cecil Beaton, no musical "My fair lady" para a corrida de cavalos de Ascott. Elas preferem fofocar com muito empenho, lá embaixo, no gramado.

O grande inimigo público é o gavião. Mas este nunca se aproxima da casa. Fica rodando perto das nuvens, magnífico no seu vôo tranqüilo e soberbo.

Agora, pelo amor de Deus, não venha me falar dos pombos. Estes, abomino. São verdadeiros ratos voadores. Prefiro, e muito, os eventuais urubus.

Mas vá domesticar um urubu!

 

Dimitri Ganzelevitch    

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