arece que foi ontem, mas era o longínquo ano de 1962, em que o pai de Maria das Graças, Gracinha, uma amiguinha minha, lá das bandas de Itapagipe, onde nasci e me criei, chegou com todo gás e cheio de raiva chutando as traves feitas de bambu. Olha que deu um trabalho danado subir as dunas de areia branca escaldantes ao meio-dia, coisa de dar bolhas nos pés; enfrentar as aranhas, piolho-de-cobra, lagarta de fogo, lagarta pintada e os saguis, cada um mais brabo do que outro e ainda tinha o galo doca de um olho, polaco, com o pescoço bem pelado e vermelhão que teimava em bicar quem se aproximava do ninho que ele construíra com a galinha rajada. Isso bem no lugar onde estavam os caules mais fáceis de cortar com canivete cego. Nesta época garoto nenhum pegava faca na cozinha sem levar uns tabefes ou uns bons puxões de orelha.
O pai de Gracinha, seu Armando, odiava quando encontrava a filha jogando futebol com os garotos. Ele dizia que o baba era coisa para homem e que ela estava agindo errado e tome-lhe beliscão e manda ver no safanão. Mas ela não desistia e bastava chegar o dia seguinte e a gente montar o campinho, lá perto da carvoaria, junto do açude ou na praia, à beira-mar, que ela se metia no meio e não havia quem a fizesse desistir de participar conosco da boa pelada.
Para nós era uma alegria ter Gracinha ali no meio, jogando bola, por três motivos: o primeiro era que ela jogava futebol melhor que a maioria dos meninos e todo mundo a queria ao lado.
O segundo motivo era que Gracinha era linda de morrer com aquele cabelo loiro encaracolado, uns olhos azuis inesquecíveis e um sorriso que iluminava todo o bairro, cada vez que abria sua gargalhada, com mais lúmens que as lâmpadas da Companhia de Energia Elétrica da Bahia ou da Light.
Por último, um bom motivo era o fato dela, quando ganhava uma partida, ajudava todo o time todos estudavam na mesma escola, no Colégio Luiz Tarquínio, na Boa Viagem a fazer o dever de casa ou trabalho de equipe, pois era a única que estudava de verdade e era inteligente a danar.
Seu Armando nunca se conformou em ver Gracinha jogando com a gente e até hoje quando vejo alguém vendendo cinto ou passo numa loja e vejo aqueles cinturões grossos lembro dele chegando por volta das cinco horas da tarde, com saco de pão embaixo do braço e já tirando o cinto e a gente gritando " corre Gracinha" e todo mundo correndo, chutando a bola para longe para pegar depois, pegando os livros no chão e tentando salvar pelo menos uma trave de bambu. O homem não era fácil e naquele tempo vizinho mais velho tinha mesmo direito de dar uma surra no filho do outro que estivesse fazendo qualquer coisa errada. E a família ainda agradecia pela preocupação e pela punição.
Gracinha cresceu, virou aeromoça, hoje tem uma empresa de turismo, adora futebol, é louca pelo Flamengo e fica triste ao ver a que ponto o Esporte Clube Bahia chegou em termos de decadência.
Hoje vejo a filha de Gracinha jogando bola, disputando as Olimpíadas do Vieira e ganhando medalha de campeã no Futsal. Ao lado dela estão outras meninotas graciosas, vivazes, dando dribles, cambalhotas, fazendo ponte, dando passes certeiros, chutando com incrível pontaria, vibrando e comemorando a cada gol, cada firula de deixar Romário, Zico, Ronaldinhos e quem sabe o Rei Pelé de queixos caídos.
Vejo os pais - mãe não vale porque mãe já aceitava tudo desde tempos idos - torcendo: alguns até só faltando entrar em campo para ajudar no lançamento (claro que alguns exageram nas cobranças quando a filha não está jogando bem, mas que jeito, sempre haverá um pai sem equilíbrio emocional em qualquer esporte ou pela vida afora) e outros que choram de emoção quando a filha ganha ou chora lamentando que a filhotinha, seu bebezinho do coração não conseguiu ganhar, abraçam e dizem:
- Quem sabe na próxima, filhinha!
O certo é, que graças a meninas como minha amiga de infância, as garotinhas do Vieirinha e de outras escolas podem jogar seu baba, disputar suas olimpíadas ou os intercolegiais sem precisar ficar com um olho na bola e outro na esquina esperando ver a tempo o cinturão do pai. Aliás, seu Armando foi vencido e hoje, em sua velhice contemplativa, diz sem nenhuma convicção e com afável brilho nos olhos que: "se as garotinhas do Futsal do Vieira fossem suas filhas, iriam ver". Na verdade, ver nada, pois com o tempo ele mesmo viu, escondido, Gracinha jogar no time do colegial do Ginásio João Florêncio Gomes, na Ribeira.
E ficava orgulhoso dos tantos gols que ela fazia. Mas aí ela já estava com 16 anos e noiva de Mário Contreiras, que tinha o maior ciúme da galera do baba.
As gatinhas do Vieirinha, por falar nisso, jogam bonito.
E conheço de perto uma delas, que disse, vai ser jogadora de futebol e ganhar mais que Ronaldinho Gaúcho, lá na Europa, onde, descobriu, futebol feminino é valorizado. Acho que vou pegar o cinturão, pois não a quero longe de mim. Mas é tão lindo vê-la jogando.
Acho que até seu Armando iria gostar.
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