segunda-feira, janeiro 01, 2007


DEVOÇÃO

Os auto-milagres de Bom Jesus dos Navegantes



hamar pelo nome de Deus sempre foi uma saída na hora do desespero dos pescadores que saíam para os pesqueiros, muitas das vezes mais de quinze ou vinte quilômetros de distância em mar aberto. São muitos os protetores dos pescadores: São Paulo, São Gonçalo, Santo Erasmo e o mais famoso é São Pedro. Todos da Igreja Católica. Na Igreja Ortodoxa quem protege os marinheiros é São Nicolau. No candomblé a entidade é feminina e se chama Iemenjá. O hábito de chamar por Jesus veio dos portugueses que saíam em suas loucas empreitadas, em busca de especiarias e riquezas em todos os mares.
Mas, foi na Bahia que Jesus passou a ser o Bom, Nosso e Senhor, de tanto impedir que os saveiros, os paquetes, as catraias, canoas e caravelas afundassem. Passou a merecer um tratamento todo especial. Nosso Senhor Bom Jesus dos Navegantes, que ontem teve mais um majestoso dia, foi acolhido nos braços de sua mãe, na Igreja de Nossa Senhora da Boa Viagem e só sai do nicho no dia 29 de dezembro para ir visitar Nossa Senhora da Conceição, e voltar para sua morada estilo colonial no bairro de Boa Viagem, na primeira manhã do ano novo, chova ou faça sol.
Nenhum historiador garante. Alguns vagos registros indicam que a procissão, com oferendas foi uma forma que os comandantes das naus que chegavam da Europa ou África, teve início no século Dezoito. Entretanto, foi exatamente no ano de 1890 que começou para valer a chamada devoção. No final do mês de dezembro todo o litoral estava sob uma tempestade daquelas com raios e trovões e ninguém conseguia sair para pescar fazia dias. A situação era caótica e até mesmo o protetor estava ameaçado de não sair em sua procissão marítima, pois, além do mar bravio havia o problema da falta de apoio do Estado, ainda dividido por causa da Proclamação da República, ocorrida um ano antes. A Marinha negou embarcação para conduzir a imagem. Na última hora um oficial decidiu emprestar a galeota e bastou colocar a imagem em seu interior, em plena violência das ondas, que o tempo clareou e o mar ficou calmo. Os fiéis comemoraram seguindo a embarcação a nado e em barcos menores. Era um milagre.
Mas, ainda haveria um outro a acontecer. Como de praxe, quando a galeota passava perto do Forte São Marcelo, sempre era saudada com 21 tiros de pólvora seca. Desta vez foram só dois tiros, que passaram milagrosamente sobre a cabeça do santo. A “salva” de bala verdadeira canhão foi atingir um navio de bandeira norueguesa e causou avarias com certa gravidade, gerando uma situação delicada para o governo brasileiro. Estado e Igreja nunca mais voltariam a se entender no que concernia aos festejos para Nosso Senhor Bom Jesus dos Navegantes.
No ano seguinte a Marinha negou novamente a embarcação e um comerciante português de nome Agostinho Dias Lima, salvou a situação emprestando um escaler que foi rebocado pelo trajeto. A relação com a Marinha do Brasil se deteriorava a cada ano e um grupo formado por operários, pescadores, calafates, capatazes e carpinteiros decidiu que a procissão marítima não acabaria. Era preciso construir uma galeota, coisa que demandava meses. No dia 27 de dezembro de 1891, com as bênçãos de Bom Jesus e Oxalá saiu do estaleiro, localizado na praia do Bogari, uma monumental embarcação com 60 palmos de comprimento, 12 de boca, seis de pontal com camarim de 11 palmos de comprimento (sendo nove de frente e 6 de fundo). O anjo Arcanjo que orna a proa tem seis palmos de altura e foi feito no Liceu de Artes e Ofícios, o mesmo da ramagem e outros emblemas.
A galeota era mais um milagre a ser registrado. E levou de batismo o epíteto “Gratidão do Povo”. Só não se sabe quanto custou à obra, mas aí é coisa afeta ao santo e seus devotos. Já a Marinha, no século passado, se redimiu, e hoje empresta seus grumetes cheios de caxangás, para que levem a remo a galeota até os pontos de atração. Assim prossegue a mais que centenária devoção.

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